A CEGUEIRA NOS NOTURNOS DE VALERIA REY SOTO
Os Noturnos de Valeria Rey Soto emergem através de um estado de cegueira. Sim, porque trata-se de um conjunto formado por desenhos, gravuras e pinturas, manifestações que inevitavelmente possuem uma natureza invisual e ao mesmo tempo distante da palavra, isto caso o artista esteja de fato em profundo envolvimento com a sua criação.
Para perceber o fundamental aspecto invisual da pintura é preciso atentar para as diferenças existentes entre o olhar e a visão. De acordo com o teórico português Carlos Vidal, o olhar distingue-se da visão, embora ambos façam parte da ocularidade, que por sua vez se traduz como um complexo sistema que comporta os mecanismos da visão e do olhar. Portanto, o olhar e a visão como categorias desse sistema funcionam conjuntamente, embora em direções distintas.
Ainda de acordo com Vidal, o universo da visão diz respeito à construção de imagens e abrange questões amplas que abraçam quatro aspectos: o visual, o invisual, o visível e o invisível. Porém, enquanto que a visão edifica as imagens do mundo objetivo, ao olhar pertence a sua construção filosófica, e, portanto, mais profunda. Neste sentido, o olhar vincula-se ao invisual, que é o que de fato mais importa na elaboração e na percepção de um desenho ou de uma pintura, porque é a invisualidade que os aproxima da condição de verdade.
Entretanto a percepção da invisualidade, nesses tipos de manifestações artísticas bidimensionais que são atreladas à atuação das mãos sobre superfícies (desenho, pintura, gravura, etc), por sua vez implica diretamente na maneira com que o artista as realizou, e não existe uma fórmula secreta para acessar esta condição, pois para atingi-la faz-se necessário estar imerso num certo estado de “cegueira”, quero dizer, da cegueira que se apossa do autor ao inscrever manualmente uma imagem sobre uma superfície bidimensional, momento em que repentinamente sua respiração se faz quase suspensa e suas mãos parecem movimentar-se independentes dos olhos e da expressão verbal. Sob essas condições, as imagens que ali surgem parecem brotar contra a própria vontade do artista, a ganharem vida própria, deste modo a aproximarem-se de uma verdade íntima.
Entretanto esse conteúdo franco e verdadeiro é raro na pintura ou no desenho; poucos artistas conseguem atingi-lo, porque, desenhar ou pintar em estado de cegueira é correr riscos de deixar-se livre das amarras de certos estados aprisionadores desencadeados pela nossa consciência.
As três séries de trabalhos que compõem o conjunto dos Noturnos, de Valéria Rey Soto revelam imagens enigmáticas, abertas a várias interpretações, porque parecem situadas no sonho, mas não sem alguma sutil atmosfera de pesadelo. Tanto as gravuras, quanto os desenhos e as pinturas apresentam personagens brincantes, humanos e semi-humanos a conviverem em estranha harmonia.
Ao vislumbrar essas imagens, automaticamente me veio à memória algumas situações poéticas paralelas, como uma frase de Goya que diz, O sono da razão produz monstros, título de uma gravura de sua autoria, componente da série Os Caprichos, onde o artista se mostra adormecido sobre suas anotações e cercado de obsessivas imagens de corujas, envolto numa densa atmosfera de pesadelo; Também me ocorreram as enigmáticas criaturas mascaradas de James Ensor, que vivem situações indefiníveis entre a realidade e a fantasia, ao comportarem-se em estado de euforia bizarra; ou ainda lembrei-me da intensidade psicológica e o movimento das figuras presentes nas primeiras pinturas de Oskar Kokoschka; como da fluidez linear dos corpos humanos de Egon Schiele, cuja carga erótica demonstra um profundo envolvimento com a sua psique.
Embora longínquos, e sob o meu olhar, esses entrelaçamentos parecem tangenciar em sentidos ambíguos os Noturnos de Soto, quer seja ao nível emocional ou estrutural.
No sentido emocional isso acontece à medida em que a artista consegue conciliar “atmosferas” distintas, de ingenuidade, melancolia, sensualidade, alegria, obsessão (a insistente presença do coelho), de diversificação e de mistério, visto que não estamos exatamente aptos a decifrar o que se passa em cada cena desse conjunto de gravuras, desenhos e pinturas, cabendo à nossa imaginação tomar os rumos que lhe aprouver.
No sentido estrutural, ou seja, do ponto de vista composicional, cromático ou da configuração linear e matérica dessas obras, também percebo antagonismos, pois a exacerbada saturação e o grau de luminosidade da cor, pela sua vivacidade, a emanar alegres radiações, vai de encontro aos assuntos de porão, lugar de convivência de objetos aleatórios entranhados de tempo passado, lugar de profundezas abissais, pois o passado sempre de alguma maneira afeta nosso psiquismo. Esse mesmo universo cromático, no sentido da sua materialidade, a interagir com a formação linear, contribui ainda mais para a acentuação da tensão dos conteúdos desses trabalhos, porque o que percebemos nos semblantes dos brinquedos vivos, que povoam o porão, ou seja, as acentuações lineares, de gestualidade livre, que compõem o semblante desses personagens, as tornam suspeitas, pois somos incapazes de afirmar sobre as suas intenções para com a figura feminina que se propõe a interagir alegremente com eles nesse ambiente escuro.
A reunião de todas essas contradições que perfazem a atmosfera densa e leve dos Noturnos só nos confirmam a impossibilidade de terem sido realizadas de modo puramente intencional; em sua “cegueira”, Valeria Rey Soto caminhou na escuridão do porão, ou melhor, no escuro de onde se origina a verdadeira pintura, essencialmente invisual, mas que, infelizmente apenas meramente ocular e visual, e, portanto, superficial e ilustrativa para aqueles que ignoram e desconhecem a sua verdadeira essência, razões pelas quais não conseguem acessa-la.
Bete Gouveia
Lisboa, 05 de agosto de 2018
PREOCUPAR-SE COM FLORES
Sempre que observo as flores, ocorre-me pensar que elas, juntamente com os pássaros e as borboletas, estão entre as manifestações mais especiais da natureza.
Dada a sua exuberância cromática, como também pela extrema complexidade e sensualidade das suas configurações, as flores sempre exerceram forte atração sobre o olhar humano.
Artistas de todas as partes do planeta, em diversos momentos ao longo da história da arte, no campo da pintura e do desenho, debruçaram-se sobre esse delicado produto do reino vegetal.
Porém, a maior parte dos que se arvoram a captar suas qualidades essenciais, perdem-se em realizações que não passam de grosseiros simulacros, superficialmente retinianos que, ao invés de atrair-nos, põem em evidência apenas a impotência desse artista de atingir um tipo de sensibilidade rara, necessária a quem se aproxima desse particular universo.
Distantes dessa grande maioria, portanto, estão aqueles artistas que conseguiram entrar em sintonia com as flores, comungando com elas um tipo de naturalidade espontânea e despretensiosa. É o caso de Van Gogh e seus girassóis que dramaticamente parecem captar a energia radiante do universo; Gerhard Richter e suas rosas semi-mortas e solitárias; Matisse e seus singelos ambientes florais carregados de leveza e intimidade, ou mesmo Mondrian, cujos desenhos que evidenciavam a constituição formal dos crisântemos e outras flores, o ajudaram a construir seus fundamentos neoplasticistas.
As flores constituem a preocupação central de Valéria Rey Soto, que nesse caso rege um processo de orquestração quase espontâneo, pelo fato de articular com expansões e contenções, extravasamentos e minúcias, na execução das suas obras.
Povoando todas as séries de trabalhos da artista, as flores constituem uma teia em expansão que parece insistir em afirmar sua infinitude e se negar ao aprisionamento que lhe é imposto pelas margens do suporte, seja ele papel, tela, tecido, ou quaisquer outros.
A ânsia de liberdade dessa rede vegetal, que parece autônoma, desdobra-se em diálogos ao deslocar-se em visíveis e constantes movimentos rítmicos. Em algumas ocasiões ela se torna mais densa e assume diversas materialidades ao mesclar-se às texturas de pele humana. Em outros momentos transmuta-se em heterogêneas e aparentes identidades, quando disfarçadas de estamparias saturadamente coloridas, ou camufladas de árvore, nuvem, personagens de ópera, animais e seres mitológicos.
Todos esses disfarces, no entanto, parecem servir para revelar, subliminarmente, seu verdadeiro objetivo, que nesse caso se assemelha à função primordial de todas as flores: sua latente sensualidade genital, selvagem e primal, presente e pulsante em todos os seres viventes.
Bete Gouveia
Recife, março de 2011.
VÉNUS E PRIAPO
Nesta serie de desenhos, que não por coincidência foi concebida e criada durante a primeira gravidez de Valeria, a artista esta homenageando os deuses e as deusas da fertilidade, abrindo um dialogo inesperado entre as texturas coloridas e exuberantes que caracterizam seu trabalho e uma seleção eclética de obras espalhadas através dos séculos, desde o período neolítico até hoje em dia.
De um lado, temos a anatomia divinal feminina, aqui chamada de “Vênus”, deusa da fertilidade, da beleza e do amor no panteão romano, mas representando um arquétipo feminino universal, presente em quase todas as mitologias, seja sob o nome de Afrodite, ou de Isis, ou de Oxum... Vênus, nascida do mar, na concha, molhada, o que vale dizer: sensual, oferecida, pronta para o amor – e este convite nunca foi tão forte quanto nas obras de Valeria, que, com seus oceanos de camadas e texturas, nós seduz e nós provoca a mergulhar sempre mais fundo dentro do desenho.
Do outro lado, temos as divindades fálicas, simbolizadas por Príapo, deus dos jardins e da fecundidade, responsável pela fertilidade não apenas das mulheres, mas também do gado, da terra e das colheitas. Nestas representações, as aquarelas de Valeria parecem dissolver e amaciar a violência tipicamente associada com o órgão genital masculino, resultando numa coleção de falos irresistivelmente doces e coloridos. Mas não se deixem enganar: atrás das flores e dos enfeites, ainda temos um Príapo macho, vibrando com toda sua força e seu poder procriador.
Habib Zahra, 31 de julho de 2012